Rádio

Odisséia Uruguaia III

Interlúdio campestre

Desembarquei do ônibus que fazia o percurso Rio Branco-Melo e fiquei no meio do nada, cercado de muito pampa em volta e pouca civilização para me encontrar perdido. Joselo e Rosana demoravam a chegar, sabia que o pai dele tinha terras por ali e pelo combinado eles me buscariam no Km 75. Passei a desconfiar de suas combinações, ainda mais quando eles combinavam com terceiros que ficavam encarregados de me comunicar o combinado.

Na real não estava perdido e mal pago como suspeitara. Como o maldito horário de verão deixava os relógios uruguaios atrasados uma hora em relação à hora oficial do Brasil, eles nem sabiam que eu já estava esperando há uma hora na beira da estrada. Antes do descontrole bater, tinha abordado no auge do desespero um tio de bombacha, com cara de índio que morava em um sítio ali perto. Perguntei ¿hay telefono? e ele disse ¡no!

Como se não bastasse o horário não ter fechado o que mais os atrasou foi o fato de Joselo querer guiar o carro, mesmo sem saber, por uma estrada longa e complicada. Ao ver o carro chegar me alegrei e agradeci a Deus.

A estrada era horrível mesmo, de areia, toda irregular e curva mas o cenário compensava tudo. Aqueles longos campos verdejantes a se perder de vista, com o céu escurecendo e ficando cinza e azul em certas faixas com a luz do sol já se retraindo. Depois de anos aquela beleza agro-pastoril continua bem viva em minha memória.

Era segunda-feira e como sempre os planos eram passarmos o dia lá e voltar de noite para o outro lado da fronteira e preparar o retorno triunfal para outra apresentação no sábado seguinte do espetáculo das meninas e então voltar para SC.

Acabamos ficando lá a noite toda e me arrependi de ter deixado minha mala em Jaguarão com minhas roupas. Restava a esperança de que retornaríamos no mesmo dia, assim comecei a perceber que os dois eram ruins em cumprir os esquemas previamente planejados.

Conheci o velho Pepe, pai de Joselo, um uruguaio de cabelos brancos criado no pampa, fanático pelas novelas brasileiras das 8. Todo dia ele sentava em frente à TV com sua comida e assistia a’O Clone. Uma vez quando as mulheres tinham saído da sala ele se vira em seu sofá e fez um comentário bastante lisonjeiro acerca dos peitos da Giovana Antonneli e todos rimos com o velhinho safado. Tão logo acabava a novela e lá ia ele para seu quarto, escutava uns tangos que tocavam no rádio e devia dormir descansado, para acordar cedo no outro dia.

Conheci também a irmã de Joselo e o marido dela, um contador de histórias com os dentes meio ruins. Esse sujeito se vestia como o gaúcho típico e andava a cavalo e se ocupava com a lida da terra. A irmã de Joselo lembrava pouca coisa o irmão. Ela se ocupava das tarefas domésticas.
Havia dois cães, pastoreiros, eles cuidavam da criação de ovelhas, bois e vacas e cavalos.

Um carneiro de nome Guancho também vivia solto pela área, ele tinha, segundo me contaram, o hábito desagradável de atacar as pessoas. O animal era perigoso quando baixava a cabeça e vinha na direção de sua vítima e eu que acreditei ter feito amizade com ele, mas não fui poupado. O bastardo me atacou também. Deram um jeito nele amarrando-no a uma corda presa na cerca, assim parecia um cão numa coleira.

Por questão de uma noite tinha perdido uma festança regada a caipirinha e mate com música ao vivo do violão do uruguaio e com o Juliandro, primo de Rosana e percussionista que acompanhava Joselo nas apresentações de dança. Morava ali também a tia Éster, uma senhora pequena e simpaticíssima que se preocupava com todos como se fossem os filhos que não teve.

Luz elétrica só do gerador a querosene, por isso de noite a casa ficava escura, iluminada por velas, e pela TV quando estava ligada. O sistema para tomar banho era muito simples, não que eu esperava hidromassagem, só que uma caneca e balde com água fazendo as vezes de chuveiro eram bem menos do que eu gostaria.

Na primeira noite, como achava que íamos embora no outro dia acabei pulando o banho, além do que eu nem tinha outra roupa para trocar. De novo amaldiçoei a minha burrice pela mala que ficou do outro lado do rio, no Brasil.

Logo era noite do outro dia e ainda estávamos ali. E outra noite na companhia agradável daquele pessoal. Me tornei um campesino por excelência, enrolava e fumava meus próprios cigarros de fumo de corda todas as noites. Tocávamos e cantávamos ao ar livre e limpo do campo. Comecei a compreender os poetas do arcadismo.

Fiquei alguns dias com a mesma roupa, de segunda a quinta, quando iríamos a cidade de Melo e ver a gravação da entrevista que o casal binacional iria dar para a emissora local.

Nesse ínterim andei a cavalo, coisa que tinha feito uma vez na vida e tomei banho em uma sanga que estava dentro das terras de Pepe. A água era clara e quente, uma delícia, aproveitei para lavar o couro. Fui com Rosana um tempo depois dos outros. Eles tinham ido para lá a cavalo, na volta nos cederiam o transporte eqüino. Esperei a roupa secar ao sol e retornamos para a casa montados nos quadrúpedes. Mais acostumado com o trotar no lombo do animal eu ia menos tenso. No dia anterior tinha dado uma volta com um cavalo que segundo o contador de lendas, era xucro, e não relaxei muito, aproveitando pouco a experiência.

Eu adorei o lugar, gostaria de ter um refúgio como esse para recorrer quando me sentisse estressado e de saco cheio dos problemas da civilização. Não sei se teria muita paciência com aquela calma por tanto tempo, mas por um mês no verão eu garantiria ficar sossegado e sem me preocupar com o resto do planeta.

Por mais que me sentisse feliz ali, acho que dificilmente abdicaria dos confortos do mundo urbano, entretanto Juliandro estava quase deixando para lá a vida na cidade e se dedicando à vida em local tão bucólico. Ele dizia que estava cansado da vida de artista e que já tinha aprendido os ritos da família e que por ele ficava lá para o resto da vida. Não havia como não concordar mas não era para tanto. Lembre-se que era verão, queria ver se ele enfrentaria o inverno que parecia ser bem rigoroso com tanta galhardia.

Com alguma tristeza por deixar para trás um lugar tão maravilhoso, fomos para a cidade, tia Ester foi conosco. Nos despedimos de todos os que ficaram e imaginei a vida continuando no ritmo próprio que aquele lugar encerrava.

Escrito, produzido e dirigido porLeandróide às 8:21:00 AM  

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